segunda-feira, 31 de agosto de 2009

CARTA POÉTICA

Tu eras meu amor abrasado. Tu eras o inferno disfarçadamente vivo em mim. E tuas chamas queimavam. Queimavam e lambiam as paredes do quarto, me levando ao céu de todo gozo, escorrido na lisura das coisas mais delicadas.
Tu eras minha indelicadeza, minha incapacidade de discernir sobre as asas e as raízes. Tu eras o que em mim sonhava e doía, os meus contraditórios.
Hoje, tu não és. O que te tornaste é findo. Canções partidas. Relatos mudos. Silêncio. Espanto. Sei, é por piedade que te olho. É por perceber-te hirto que me demoro a fitar teu dorso branco e teu assombro noturno. E me nauseias tanto quanto um barco pendente nas águas. Quanto o sujo. O asco. Na tua pele, onde tatuei meus versos, sangra a nudez. Sei que posso amansá-la. Mas te olho e vejo que não és.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

PÁTIO


Ai, debaixo do teu corpo
é que me reviro, resvelo
pontiagudas farpas
e palavras.
Meu coração brota
indevidas fantasias
que meus caninos refazem
caminhando sobre tua pele
mordendo tuas flores
mastigando o escuro
das tuas fendas obscenas.

E no fundo de mim mesmo
encontro-me clandestinamente
no largo da minha própria cama.

domingo, 23 de agosto de 2009

CARTA POÉTICA

Como te dizer: noite, morte, escuridão se isso ainda é o que dá sentido a tudo? Teu nome estanca o assovio, o assombro e desperta dois nítidos corpos que atravessam a sala deixando unguento e matizes como rastros do que foi.
Não quero procurar-te como quem se perde, ameaçá-lo como quem espera uma concretude. Sempre te convences. Mas te enganas. Esse inquietante amor abriu-me portas pesadas onde me abrigo. E dentro dessa solidão passeio como quem colhe lírios. Fui mais completa quando tudo me faltou. Encontrei-me quando não mais me reconheci.
Olha ao teu redor...tudo é escombro. Porque és feito de mentira e de soberba. E mesmo que te retorcesse e sangrasse, nem mesmo assim te adiantaria. Porque os teus arredores são de escuras amarras, de amargas partidas, de negras funduras. Não sabes ainda dos teus adversos. Mas quando olhares teus arredores, quando eu te disser “te sei” e quando me disseres “te vejo”, te darás conta do grande e aterrorizante aguilhão que te aprisionas. E nada disso te adiantará. Porque serei tua dor, tua escrita, teu espinho, um punhado de sal sobre teu corte.

“E não haverá mais nada, negro amor.”

CANTARES VI

VI

Sobrevivo às palavras duras
E reinvento o resto da paisagem.
O tempo não é de resguardos
Ele exige impetuosidades
E delicadas insinuações.
As mulheres que fui
Fundiram-se nos quatro cantos
Do teu abraço.
Sou preguiçosa demais para ser vasta.
Não arrebento margens em vão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

RETORNO

Que não venhas.
Deixa que eu retome a vida
nessa casa de fantasmas.
Porque vem a noite
e o canto dos grilos.
Há ainda os suores noturnos,
caminhadas intermináveis
com olhares taciturnos.
Não venhas. Nem te avizinhes.
Não faças tanto alarido.
Deixa.
Eu mesma rasgo esse vestido.

sábado, 15 de agosto de 2009

CANTARES V

V

Acredito em tardes e ruínas
E imperfeições não me salvam.
O outro me olha desconfiado
E o que sou eu escurece
Enquanto enfia o pé na meia.
Não há palavras para serem ditas
Nem silêncios para serem suportados.
As escamas do teu olho
São minha única certeza.
Se partes, eu fico
Situada entre artifícios
E asperezas.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

AVE ENCANTADA




O que quero dizer
é esse falar de sombras,
de fantasmas lá de fora.
Tenho alguns livros inquietos na estante
e nem eles me bastam.
Que fogo, senhor, no meu rosto!
Que pecado traiçoeiro em minhas mãos!
Quando tenho notícias tuas
desencadeia-me um torpor
encrespado de cordões de ouro.
Meu sexo engendra truques e artimanhas
e torna-se doce feito cheiro de engenho velho.
Oscilo entre meu aguçamento
e um catre de palha.
Minha maledicência implora a todos piedade,
mas meu desejo me deixa frouxa e escorregadia.
Nunca fui santa.
Minha urgência me salva de tudo o mais.
Meu enredo de poesia
me cura de dias incontáveis.
Uma ave encantada nasce de mim.

sábado, 1 de agosto de 2009

CANTARES IV

Perco folhas expondo ternura.
Pinto cavernas em transe absoluto.
Me percorri extrema e cuidadosa
Pra vir do fundo, esquiva e retalhada.
Há mistério de nudez sagrada
Na estátua branca de ventre exposto.
Desvendei a secreta passagem
Do teu lado esquerdo.
Canto um hino sacro
Em volta do oratório herdado.
Queimo minha língua imerecida
No incenso do teu corpo.
Em amor, me refazendo.