segunda-feira, 30 de novembro de 2009

INTOCÁVEIS


A palavra vem do meio do silêncio, quente e limpa como o choro.
O choro vem mais de dentro, onde as palavras não tem nenhum sentido.
O choro e a palavra complementam-se no espaço que não pode ser visto
porque não se vê enquanto se chora
e não se fala enquanto não se vê.

A palavra arrebenta o incomunicável.
O choro arrebenta o indecifrável.

O choro cala. A palavra silencia.

Nem tudo é tocável.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

CANSAÇO


Hoje, estou pequena demais. Cansa-me a casa, o quarto, a rudeza do dia. Tudo é vidro estilhaçado junto à janela. Pesa-me a alma. Pesa-me tanto que me torno impossível de um ato de carinho. Não quero mais esse rosto de tantos anos. Também não quero a maturidade de quem já sabe o que fazer com quadros antigos. Quero a criança que fui, tão constrangida. Quero o colo de minha mãe pra deitar-me como a primeira vez. Quero a leveza das coisas pra poder respirar e pular as janelas, inclusive as que dão aos abismos. Eu não sou uma flor. Sou uma mulher com muitos espinhos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CANTARES X


X

No canto do mundo
Há um doce estranhamento.
Minha pouca vestimenta
É uma grande ameaça
Para quem não fala
Minha estranha língua.
Quem ousa entrar
Na casa dos meus ontens
Sem nojo do meu grito?
Estou à beira de uma palavra
E nada salva
Esta última chama acesa.

domingo, 25 de outubro de 2009

ALGUMAS NOITES

Também umas noites
te percebo acordado
pousando os teus olhos sobre mim.
E o peso desse olhar
alarga esse peito de pluma
que voa ao teu encontro.
Há algumas noites de velas,
de pesadelos e assombrações,
uns vitrais esquisitos
umas odes, uns areais
e essa febre de dentro
queimando nas palavras.
Penso no pouso da ave
nesses sais de agosto.
Me fortaleço antes que o mundo acabe,
antes que eu me faça perdida
e cansada de algumas perguntas.

LENÇOL

Me ensina
a dizer de forma simples
as coisas que não entendo.
Me ensina a falar das falésias
que há no mar da minha vida.
Que eu fale dos demônios
que assombram minhas noites.
Que compreendam os cacos de vidros
que trago no rosto.
Que as palavras sejam tão simples e claras
quanto meu lençol de dormir a eternidade.

domingo, 18 de outubro de 2009

CANTARES IX

IX

Não te reconheço.
Nem mesmo entendo teus dons,
Tuas noites queimantes,
Tuas horas flamejantes
De seculares desejos.
O que é o amor
Esse menino que me seca todos os dias?
O que eu busco escondido
Nuns olhos claros de água salobra?
Tenho as narinas e as veias estufadas.
Meu verso não suportaria
O peso da palavra não
Na tua boca.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

CANTARES VIII

VIII

Quem, senão eu me refazendo extensa
Com dentes e pasto e mordeduras,
Sorvendo as horas que não passam,
Aprendendo demoras?
Desfio pequenos rosários
E não encontro o mais fundo de ti.
Então escrevo, procuro em vão
Minha cálida matéria.
Que eu te leve torto,
Suspenso, sem qualquer asa
Porque a mim importa
A peçonha aveludada,
A dor mais funda
Quando me percorres.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

MINI CONTO

E ela tomou o vinho...não estava nem tão frio assim, mas decidiu quebrar algumas regras na vida. Cansou de ser boazinha, aliás, ser boazinha era o que ela menos queria naquele momento. Pensou se estava bem vestida o suficiente. Achou que sim. Pensou se valeria a pena. Disse a si mesma que sim. E que parasse de pensar bobagens. Ela era bonita e pronto. Isso bastava.
Olhou-se uma vez mais no espelho e teve a idéia de abrir um dos botões da blusa. Insinuava seus belos seios. Sim, tinha belos seios. Sorriu sentindo o calor do vinho descendo pela garganta. Sim, estava pronta.
Caminhou devagar até a varanda onde a outra estava vestida de preto, os braços abertos...jogou-se neste abraço há tanto esperado e o vermelho-sangue-vinho espalhou-se pela escuridão adentro.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

QUANDO ME DEITAS




Quando me deitas
vais abrindo meus caminhos lentamente
tocando os vãos, desvãos inacabados,
cheios de silêncios mórbidos.
Teu olhar me suga, vertiginosamente,
enquanto murmuras águas marinhas,
algas e um tanto de sal.
Pareces pequeno.
No entanto, consegues envolver-me
despojada e extrema
no teu peito vasto.

Quando me deitas
e percorres lentamente meus caminhos,
minhas flores se entregam nesse claustro
de anseios e sussurros.
E as tuas palavras, as mais doces,
vão queimando os muros,
lençóis e o pequeno quarto.
Pareces pequeno.
No entanto, abranges inocente,
todos os meus cantos e recantos.
E tudo é gozo de tanto tempo.
E tudo é cio e umidade.

domingo, 13 de setembro de 2009

TÉDIO

Tudo está lá fora...
A vida às moscas
e minha alma pendurada no varal...

domingo, 6 de setembro de 2009

CANTARES VII

VII

Por mais que eu te diga concha, água, âncora
Não me escutas.
Desmanchada pelos vendavais
Contemplo minha herança em sobressalto
E retraio-me ante tanta escuridão.
Depois, há o tempo
Refazendo os caminhos
Com meus próprios medos.
Cansa-me o gesto repetido
Tua canção antiga
E a solidão alheia.
Sou minha própria inquisição.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

CARTA POÉTICA

Tu eras meu amor abrasado. Tu eras o inferno disfarçadamente vivo em mim. E tuas chamas queimavam. Queimavam e lambiam as paredes do quarto, me levando ao céu de todo gozo, escorrido na lisura das coisas mais delicadas.
Tu eras minha indelicadeza, minha incapacidade de discernir sobre as asas e as raízes. Tu eras o que em mim sonhava e doía, os meus contraditórios.
Hoje, tu não és. O que te tornaste é findo. Canções partidas. Relatos mudos. Silêncio. Espanto. Sei, é por piedade que te olho. É por perceber-te hirto que me demoro a fitar teu dorso branco e teu assombro noturno. E me nauseias tanto quanto um barco pendente nas águas. Quanto o sujo. O asco. Na tua pele, onde tatuei meus versos, sangra a nudez. Sei que posso amansá-la. Mas te olho e vejo que não és.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

PÁTIO


Ai, debaixo do teu corpo
é que me reviro, resvelo
pontiagudas farpas
e palavras.
Meu coração brota
indevidas fantasias
que meus caninos refazem
caminhando sobre tua pele
mordendo tuas flores
mastigando o escuro
das tuas fendas obscenas.

E no fundo de mim mesmo
encontro-me clandestinamente
no largo da minha própria cama.

domingo, 23 de agosto de 2009

CARTA POÉTICA

Como te dizer: noite, morte, escuridão se isso ainda é o que dá sentido a tudo? Teu nome estanca o assovio, o assombro e desperta dois nítidos corpos que atravessam a sala deixando unguento e matizes como rastros do que foi.
Não quero procurar-te como quem se perde, ameaçá-lo como quem espera uma concretude. Sempre te convences. Mas te enganas. Esse inquietante amor abriu-me portas pesadas onde me abrigo. E dentro dessa solidão passeio como quem colhe lírios. Fui mais completa quando tudo me faltou. Encontrei-me quando não mais me reconheci.
Olha ao teu redor...tudo é escombro. Porque és feito de mentira e de soberba. E mesmo que te retorcesse e sangrasse, nem mesmo assim te adiantaria. Porque os teus arredores são de escuras amarras, de amargas partidas, de negras funduras. Não sabes ainda dos teus adversos. Mas quando olhares teus arredores, quando eu te disser “te sei” e quando me disseres “te vejo”, te darás conta do grande e aterrorizante aguilhão que te aprisionas. E nada disso te adiantará. Porque serei tua dor, tua escrita, teu espinho, um punhado de sal sobre teu corte.

“E não haverá mais nada, negro amor.”

CANTARES VI

VI

Sobrevivo às palavras duras
E reinvento o resto da paisagem.
O tempo não é de resguardos
Ele exige impetuosidades
E delicadas insinuações.
As mulheres que fui
Fundiram-se nos quatro cantos
Do teu abraço.
Sou preguiçosa demais para ser vasta.
Não arrebento margens em vão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

RETORNO

Que não venhas.
Deixa que eu retome a vida
nessa casa de fantasmas.
Porque vem a noite
e o canto dos grilos.
Há ainda os suores noturnos,
caminhadas intermináveis
com olhares taciturnos.
Não venhas. Nem te avizinhes.
Não faças tanto alarido.
Deixa.
Eu mesma rasgo esse vestido.

sábado, 15 de agosto de 2009

CANTARES V

V

Acredito em tardes e ruínas
E imperfeições não me salvam.
O outro me olha desconfiado
E o que sou eu escurece
Enquanto enfia o pé na meia.
Não há palavras para serem ditas
Nem silêncios para serem suportados.
As escamas do teu olho
São minha única certeza.
Se partes, eu fico
Situada entre artifícios
E asperezas.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

AVE ENCANTADA




O que quero dizer
é esse falar de sombras,
de fantasmas lá de fora.
Tenho alguns livros inquietos na estante
e nem eles me bastam.
Que fogo, senhor, no meu rosto!
Que pecado traiçoeiro em minhas mãos!
Quando tenho notícias tuas
desencadeia-me um torpor
encrespado de cordões de ouro.
Meu sexo engendra truques e artimanhas
e torna-se doce feito cheiro de engenho velho.
Oscilo entre meu aguçamento
e um catre de palha.
Minha maledicência implora a todos piedade,
mas meu desejo me deixa frouxa e escorregadia.
Nunca fui santa.
Minha urgência me salva de tudo o mais.
Meu enredo de poesia
me cura de dias incontáveis.
Uma ave encantada nasce de mim.

sábado, 1 de agosto de 2009

CANTARES IV

Perco folhas expondo ternura.
Pinto cavernas em transe absoluto.
Me percorri extrema e cuidadosa
Pra vir do fundo, esquiva e retalhada.
Há mistério de nudez sagrada
Na estátua branca de ventre exposto.
Desvendei a secreta passagem
Do teu lado esquerdo.
Canto um hino sacro
Em volta do oratório herdado.
Queimo minha língua imerecida
No incenso do teu corpo.
Em amor, me refazendo.

sábado, 18 de julho de 2009

REFÚGIO

Sou um homem que se desfolha
em partes íntimas
enquanto debulhas tuas contas
em pequeninos grãos de bordados.
Procuro angustiado tuas frestas
esgueirando-me em precipícios
ouvindo distante tua pesada respiração.
Teu corpo me some entre as mãos
e se converte em várias bifurcações
onde me perco.

Não há portas.
Não há grades.
Apenas um homem que se descobre
na tua sombra despojada,
refúgio embrutecido de palavras.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

CANTARES

III

O anjo que me guarda
Acordou cruel demais.
Postou filete de sangue na porta
Parte de sua própria carnadura
E me trancou toda por dentro.
Saiu às ruas, em claro testemunho
E escreveu latente no portão: aqui jaz.
Despiu-se da pele de anjo
Cortou suas longas asas
E foi morar entre pernas
Onde todo perfume é doce.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

CANTARES

II

Aprendo encantamento
Com tuas poucas palavras.
Noites? São muitas
Mas tu estendes a vigília no vazio das horas mortas
Até configurar-se no amor que me dás
E que não vejo.
Armadilha de pequenos sóis
Envoltos em papéis de seda.
Deus está no perigo,
Na hipótese da seta lançada.
Jamais sairia ilesa
Deste teu escuro.

domingo, 10 de maio de 2009

CANTARES

I

Porque aqui dentro tudo me cabe
Espalho lótus pelos corredores.
Do outro lado da mesa
Meu coração amadurece espinhos
E já não sou essa que sou
Meu coração está plantando farpas.
O que antes era cortina e aconchego
Caiu terrivelmente sobre mim
(sentimento que conheço de antemão).
Antecipo ciúmes e indagações.
A alma lateja, reveste-se de prece
O coração emudece nos corredores da boca.

sábado, 7 de março de 2009

MULHER

Tirai a venda dos olhos

Precipitai sobre a palavra

E apascente-a.

Enfrentai as ventanias

Arregaçando as saias até os joelhos.

Olha de frente, com altivez

E mais atenta

Segura a bandeira, a tua,

Pois que há muito teus olhos brilham

Onde o escuro permanece.